O 39 estava no horizonte outra vez. Só consegui ver sua traseira partindo em direção ao confuso transito das 11 horas, as nuvens de fumaça já turvavam sua forma quadradona, típico veículo popular.
Mais um dia como outro qualquer.
Recostei-me na marquise do ponto de ônibus para sentir um pouco de pena de mim mesmo. Aquele podia ser o meu destino, pensei. Talvez a mulher com quem eu passaria o resto da minha vida estivesse lá dentro, e eu a perdi. Podia ser ainda a hora de minha morte, e eu escapei de suas garras por conta de um desvio temporal de 20 segundos, culpa do cansaço ou por mera preguiça. Não. Se não foi o caminho que tomei, então não era meu destino, conclui finalmente. Meu futuro é este que estou trilhando agora, como, por exemplo, essa discussão idiota que estou tendo comigo mesmo dentro da minha cabeça.
Olhei em volta. Rostos cansados (assim como o meu deveria estar) esperando pela chance de ir para casa, deitar em seus devidos sofás e serem felizes. Talvez estivessem sonhando com latas de cerveja, jogos de futebol, almoço na mesa.
Bateu então uma necessidade de liberdade, vontade de perder-se em qualquer lugar, se jogar no mundo e não dar a mínima para as conseqüências. Depois de alguns segundos, já tinha comigo a convicção de que entraria no primeiro ônibus que surgisse, não olharia pro numero nem pro seu destino. E foi o que fiz.
Aquela coisa rústica e mal cuidada balançava. Era o ônibus mais velho em que já tinha entrado. O adjetivo que melhor definia aquele negócio era "inapropriado". Paguei a passagem como qualquer bom cristão (incrivelmente cara, em torno dos seus quatro reais e tantos centavos) enquanto via um rapaz sorridente sair da condução aos saltos, e busquei o meu assento ao lado da janela (quando se anda de ônibus com freqüência, assentos na janela são considerados VIPs).
O trajeto não me era nem um pouco familiar. Em pouco tempo saímos do centro da cidade e entramos em algum bairro menor, mas bem cuidado. Casas de madeira com cercas de ferro, jardins bem pomposos com plantas em tons de amarelo e verde claro, algumas até com flores em canteiros planejados. A estrada agora era de terra batida, e a paisagem mais desértica; algumas árvores aqui e ali, em volta só campos verdes e nuvens ao fundo. Dava até para ver o horizonte.
Depois de mais alguns minutos de viagem veio o sono inevitável, nessas horas até os encostos da poltrona parecem convidativos. Acordei já de noite, tudo parecia estranho e confuso. Em primeiro lugar não fazia idéia do que estava acontecendo. Não estava mais naquele ônibus velho onde tinha entrado. Estava no mesmo assento, as mesmas pessoas em volta, mas simplesmente não era o mesmo ônibus. As janelas agora estavam quebradas, os bancos ainda mais rasgados e a lataria amassada. Parecia que, enquanto dormia, o ônibus passara por todo tipo de desgaste que se poderia sofrer quando se é feito de metal e anda sobre quatro rodas. Pela janela, não se via nada. As estrelas e a lua podiam não existir mais e eu nunca saberia. A estrada também estava escondida na escuridão (se é que ainda havia uma estrada) assim como qualquer coisa que estivesse em volta do percurso.
Olhei pros rostos dos passageiros à minha volta. Pareciam tão cansados quanto antes, e em suas faces permanecia a mesma expressão de inércia que havia inicialmente. Eles olhavam para o nada, e pareciam gostar daquilo. Um tremor me percorreu o estomago. Era tudo muito estranho, muito surreal. Cutuquei o homem que sentava à minha frente.
- Amigo, pra onde estamos indo?
- Você entrou neste ônibus querendo ir pra onde?
- Não pensei muito sobre o assunto. Qual é o destino?
- Bem, agora parece meio tarde pra perguntar, não acha?
Aquilo não parecia certo. Não mesmo. Minha única esperança agora era tentar alguma forma de comunicação com o meu guia; Fui falar com o motorista.
- Companheiro, onde estamos?
- Onde você acha que estamos?
- Parece que em lugar nenhum. Foi a primeira coisa que me veio na cabeça.
- Então você sabe exatamente onde está.
Aquilo não fazia o menor sentido. O lugar onde eu deveria estar era...
- Entrar neste ônibus nunca fez parte do seu futuro, isto estava totalmente fora dos planos. Estamos nas entrelinhas do livro do Destino, quando alguém faz um desvio brusco de sua rota original, torna-se meu passageiro. Você perdeu o seu caminho, e caminhos não são coisas fáceis de encontrar. Se você perde seu rumo, outra pessoa toma seu lugar. É sempre assim, e sempre será. Os lugares deste ônibus são contados.
Voltei ao meu assento. Tinha a eternidade pela frente e um sono enorme sobre minhas costas; Dormi o sono dos que não esperam mais nada da vida além da imortalidade.
Passaram-se noites intermináveis, dias sombrios e tardes melancólicas. A escuridão ainda reinava, não fazia diferença a esta altura. Vi então uma figura familiar. O rapaz que saíra quando entrei no ônibus estava de volta, pagando sua passagem e sentando ao meu lado. O ônibus havia parado de se mexer.
- Não sei se me desacostumei à vida, mas a sua é uma droga.
- Hm, entendo o seu ponto de vista.
- Sai daí, é o meu lugar. Aquela vida é sua, você querendo ou não.
A porta do ônibus, agora aberta, era um convite sedutor. Atravessei-a sem me voltar uma vez sequer para trás. Não havia feito amigos ali, não deixaria saudades.
Os detalhes finais me escapam. Estava de volta ao ponto de ônibus onde havia começado. Ainda era dia, ainda era eu. Com os olhos abertos, o resto já não tinha tanta importância.