sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Conto #2 - Alimentando Monstros

Janeiro traz suas surpresas.
Os primeiros momentos do novo ano recuperam a doce sensacao de que tudo, definitivamente, vai melhorar; mesmo apesar do frio, mesmo apesar das contas empilhadas sobre a mesa ou da velhice que devora a vida centimetro a centimetro. A insonia, porem, ignorou qualquer pressagio de melhora. Marcus esperava que pelo menos por essa noite o sono viesse, embalado pelas gotas de chuva que batiam na janela. Esperava que o frio do inverno tornasse suas palpebras mais pesadas; mas nao tornou.
Marcus se levantou da cama sem acender as luzes. Seu quarto fora em tempos passados o sotao incrivelmente empoeirado da Sra. Godsday, que estava agora bastante grata por ter alguem para fazer-lhe compania e uma renda extra mensal. O aluguel nao era caro, era barato o bastante para ser pago com o indecente salario de estagiario de Marcus, e o pequeno sotao era confortavel o bastante para ser chamado de "lar".
Marcus andou ate sua mesa de trabalho, sob a unica janela do pequeno quarto, tropecando ocasionamente em uma ou outra pilha de roupas espalhadas pelo chao. Roupas usadas nao serviam bem de carpete, pensou. Acendeu a lamparina e contemplou seu texto inacabado.
"O inverno de salacier", Marcus leu em voz alta. O titulo soava estranho aos seus ouvidos, certamente era algo que ele jamais escreveria, nao em sa consciencia... Era muito proximo de uma historia de verdade, pensou, talvez no futuro pudesse se tornar algo maior.
Marcus fechou os olhos por um instante e, como em todas as noites desde que comecara a ter insonia, o mundo se fez em sua mente. Ele nunca conseguira explicar (nem tentara) como sabia que aquele era mesmo o mundo, e nao apenas algum devaneio causado pela falta de sono. Ele apenas sabia, e podia de alguma forma sentir o universo pulsando ao seu redor. Cada criatura viva em qualquer parte do globo, em qualquer era, em qualquer plano. Era como se ele estivesse compartilhando uma consciencia maior. Sem se permitir pensar muito sobre o assunto, com medo de desfazer o encanto, Marcus se deixava levar. "Mais fundo", pensou, e instantaneamente ele estava de volta ao ponto em que parara seu relato.
Os guardas ja haviam empurrado o escravo das ameias, e o corpo do escravo atravessava agora folhas e galhos e arvores e caia com um baque surdo no chao, tendo apenas a noite como testemunha. A noite e Marcus, se ele estivesse mesmo ali; e de repente, como em um sonho, ele estava na sala do trono. Marcus podia ver o rei Salacier IV enquanto este comia com suas maos enrugadas um grande pernil de porco. Sua barba, suja de sangue e molho de tomate, se movia raivosamente acompanhando o movimento das mandibulas. De tempos em tempos os dedos do rei buscavam seu calice dourado de vinho, que um de seus servos se ocupava em manter sempre cheio. Havia mais comida sobre as vestes do rei agora do que sobre o prato onde fora servido o jantar. Marcus sentiu nauseas. "Puto monarquista", pensou, e cuspiu no chao, ou pensou ter cuspido no chao, mas nada pareceu ter saido de sua boca.
No sotao, em silencio, a caneta continuava seu incessante relato, contrariando a disposicao do proprietario da mao. Marcus estava com a cabeca inclinada para tras, e veria apenas o teto se seus olhos estivessem abertos.
No escuro, as palavras foram sendo escritas. No escuro, Marcus adormeceu.

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